"O médico que só sabe medicina nem medicina sabe", pelo que um Ginecologista Obstetra tenta abordar temas variados, por vezes aparentemente longe da medicina. É preciso tentar saber tudo para se saber alguma coisa.
Desde que tinha iniciado os trabalhos, há vários anos, para produzir as curvas de peso fetal/recém nascidos para a população Portuguesa, que tinha definido com os meus colaboradores a facilitação do uso das mesmas como parte integrante dos trabalhos.Várias maneiras de o fazer foram equacionadas e estão em curso, em programas específicos de obstetrícia e ecografia, página web, etc. Surgiu então o desafio de um dos meus coautores para fazer uma app android.
Facilitador de programação android
Eu gosto muito de informática, mas não sou programador… pensei eu. Mas acontece que, para android, um grupo de investigadores do MIT (Massachusetts Institute of Technology) resolveu criar uma forma bem mais fácil de um utilizador sem conhecimento de linguagens de programação produzir uma app de aspeto profissional, democratizando a produção de aplicações à medida para os utilizadores e, até mesmo, comerciais. Chama-se appinventor (http://appinventor.mit.edu) e é uma aplicação para criar aplicações. O preço ainda é melhor – completamente gratuito.
É claro que ainda implica alguma aprendizagem, e com certeza envolve algumas luzes de programação, algoritmos e lógica, mas quem souber o que é um if then else terá dias ao invés de meses de aprendizagem.
A plataforma tem agora um spin off comercial – thunkable (http://thunkable.com/) com uma roupagem mais profissional, mas muito parecida. Nota-se que as aplicações são visualmente um pouco mais polidas e em linha com as guidelines da Google atuais, mas perde alguma compatibilidade com as versões mais antigas de android (mesmo muito antigas, pelo que isto não será um problema). Para já, a plataforma thunkable também é gratuita, e tem a promessa de vir a ser compatível com iOS, o sistema operativo mobile da Apple.
O suporte da comunidade a esta iniciativa, como é habitual nas plataformas open source úteis, é fabuloso. Quase todas as perguntas têm resposta em múltiplos websites de programadores, fóruns, páginas pessoais… Imensos exemplos estão disponíveis, sendo uma questão de perseverança até se concretizar uma app decente.
Não, não dá para fazer tudo, mas dá para fazer aplicações muito complexas. Eu fiquei maravilhado com a possibilidade de testar a aplicação enquanto se constrói, vendo as mudanças em tempo real no smartphone. Para alguém com pouca experiência, a iteração tentativa – erro – tentativa é rapidíssima.
As imagens acima dão um exemplo de uma página com algum nível de complexidade. Envolve cálculos, seleção de ficheiros, identificação de erros de introdução e respetivas notificações. Numa página temos o aspeto gráfico para o utilizador, os componentes e ficheiros que desejamos utilizar. Debaixo do “capot” construímos a lógica das interações com um sistema de blocos de construção que impedem a maioria dos erros de principiante (se não encaixa, é porque não dá).
Abaixo vemos o exemplo de um bloco associado a um botão que, quando pressionado, abre uma página web no navegador predefinido, e parte de um procedimento que calcula a idade gestacional a partir do comprimento crânio caudal medido em ecografia.
E porque não fazer uma app hoje?
A aplicação encontra-se disponível e gratuita para Portugal na Google play store:
Os pais querem sempre que os seus filhos sejam os maiores, mas fortes, mais inteligentes… Menos na gravidez. Sempre que se afastam da média ficam preocupados, especialmente se o crescimento/peso fetal, for baixo. O problema é que, por definição, metade dos bebés está abaixo da média, pelo que a angústia é frequente e poucas vezes fundamentada.
As curvas nacionais
Recentemente, eu e os meus coautores publicamos curvas de crescimento fetal para o nosso país (ver aqui).
É a maior amostra colhida no nosso país e a única validada desta forma. A importância está em podermos comparar (quando necessário) um peso fetal estimado ou ao nascer com uma população de referência compatível e credível.
Existem centenas de referências deste tipo no mundo inteiro, que diferem substancialmente entre elas, e, sobretudo, dos dados nacionais.
Para que servem?
Na avaliação do crescimento fetal, durante a gravidez, e ao nascimento, um dado é frequentemente calculado/colhido: o peso.
Este peso é comparado com aquilo que se espera para a idade gestacional (semanas de gravidez), de forma a podermos perceber se é adequado. Mas antes de podermos tirar qualquer conclusão, vários aspetos devem ser tidos em consideração .
Estimativa de peso por Ecografia
No caso da estimativa de peso por ecografia, trata-se de um peso estimado com base em parâmetros ecográficos, habitualmente o perímetro cefálico,
diâmetro biparietal (largura da cabeça), perímetro abdominal e comprimento do fémur. Estes parâmetros são usados em uma de dezenas de fórmulas publicadas (mais frequentemente uma de um autor chamado Hadlock) e o resultado é um valor estimado de peso. Este resultado é naturalmente falível, e o erro associado pode ser verificado nos artigos escritos pelo próprio Hadlock:
Cerca de 68% dos fetos cairão dentro da estimativa +- 7,5% (1 erro padrão)
Cerca de 95% dos fetos cairão dentro da estimativa +- 15% (2 erros padrão)
Como exemplo podemos considerar que, 68% das vezes, um recém nascido a quem foi estimado recentemente um peso de 3000g tenha entre 2750g e 3250g ao nascer. Esta diferença poderá chegar aos 450g em 27% adicionais e ultrapassar este valor em 5% dos fetos. Esta é a forma como funciona a fórmula, pelo que não é passível de melhoria, mesmo com muita experiência do ecografista. Vários autores propuseram outros métodos, mas sem melhoria significativa ou aplicabilidade prática.
Ainda assim, isto serve o seu propósito: é um parâmetro dos muitos a avaliar, e não um valor para interpretar cegamente.
O meu bebé tem uma doença por ser leve/pequeno?
Os seres humanos tem o crescimento fetal governado por vários fatores: sexo (rapazes são maiores); herança genética e raça; tamanho (e peso) da mãe; doenças da mãe; paridade (número de filhos anteriores); alimentação (de certa forma relacionada também com peso/obesidade); álcool e tabaco durante a gravidez (tabaco diminui o peso ao nascer em cerca de 5%); altitude (do local onde vive); etc.
Mesmo colhendo todos estes dados (e foram colhidos em vários estudos), é impossível prever o peso da criança. O que é possível é prever um âmbito (intervalo) onde é estatisticamente provável que se encontre esse peso.
Feitio ou defeito?
Todos os bebés têm um potencial de crescimento: um peso que, sem limitações externas, ambientais ou de doença, irão atingir. A dificuldade está em perceber que potencial é este para cada criança, algo que nos ilude enquanto médicos. Porque se trata de perceber que fetos/bebés estão mais pequenos do que deveriam estar, e, por isso mesmo, não se diagnostica só por um valor de peso. Um feto no percentil 1 pode ser perfeitamente saudável, e outro no percentil 50 ter um problema porque deveria manter crescimento no percentil 80 (ou seja, está a crescer “menos” do que deveria).
Fala-se em atraso do crescimento intra uterino, restrição do crescimento intra uterino ou restrição do crescimento fetal (RCF) quando o potencial de crescimento, segundo a interpretação do médico, não foi atingido. É algo que naturalmente assusta os pais e, infelizmente, causa muita angústia em gravidezes também de evolução normal, mas com fetos simplesmente mais pequenos que a maioria…
O que é o percentil
O percentil tem um significado puramente estatístico. O percentil 50, por exemplo, corresponde à mediana, que é o valor que está “no meio”, ou seja, divide a amostra com o mesmo número de indivíduos acima e abaixo desse valor. No caso do peso, aproxima-se bastante da média. Se dizemos que um feto está no percentil 20 do peso, constatamos que a posição numa amostra de fetos com a mesma idade gestacional o colocaria acima de cerca de 20% dos fetos e abaixo dos cerca de 80% restantes.
Portanto, este é apenas um valor estatístico para interpretar e ponderar, não algo com interpretação patológica direta.
Como interpretar o percentil de crescimento/peso fetal
Em muitos casos usa-se o percentil 10 para classificar fetos e bebés como leve para a idade gestacional. Pela descrição acima percebemos que isto significa que se decidiu, arbitrariamente, classificar 10% dos bebés como leves. São, de facto, os 10% mais leves. É também um grupo onde a probabilidade de patologia relacionada com o crescimento aumenta, pelo que faz sentido preocupar-mo-nos mais com esse grupo. No entanto, é importante sublinhar que a maioria (mais de 70%) dos bebés nesse grupo não têm nenhum tipo de problema. São, simplesmente… mais leves do que a maioria. Não podemos achar que 1 em cada 10 bebés tenha problemas!
Dentro das dificuldades já abordadas em definir qual o crescimento ideal para um determinado bebé, um valor arbitrário deste tipo (percentil 10, 5 ou 3) identifica um subconjunto de fetos que pode ser vantajoso avaliar com mais cuidado outros parâmetros ecográficos e/ou situação clínica da gravidez com maior pormenor, porque a probabilidade de doença é, apesar de tudo, maior.
O contexto clínico é de suma importância. Se, em avaliações ao longo do tempo, o percentil desce significativamente (“cruzar” percentis) é também necessária maior atenção, independentemente do percentil em que se encontre no momento. Por outro lado, uma gravidez de evolução normal numa mulher saudável com peso fetal mantido no percentil 5, sem outras alterações, poderá não suscitar cuidados diferentes.
Ainda que, habitualmente, causem maior angústia os pequeninos, o percentil muito grande também está a associado, em alguns casos, a patologia, pelo que os bebés macrossómicos (pesados para a idade gestacional, habitualmente classificados acima do percentil 90) devem suscitar igualmente dúvidas a esclarecer. Culturalmente gostamos de bebés gordinhos, mas isto é também um problema.
A vantagem das curvas nacionais
Agora percebemos que com os percentis pretendemos identificar uma posição específica no universo de indivíduos com as mesmas características e depois interpretá-la, cuidadosamente, no contexto clínico.
A vantagem das curvas nacionais é que o valor que escolhemos é realmente o que encontraremos. Isto é, dado que foram construídas com dados de bebés portugueses, se escolhermos o percentil 5 iremos encontrar sensivelmente 5% dos bebés de um hospital, por exemplo. Outras curvas apresentam valores por vezes muito diferentes, pelo que, em vez de 5% poderemos estar a identificar 2% dos bebés, ou 10%. No primeiro caso, não estaremos a atuar (se for esse o caso) nos 3% de bebés que não foram identificados; no segundo caso, poderemos estar a atuar em situações em que não pretendíamos fazer.
Se queremos o percentil x, temos de ter x%. As curvas nacionais é isso que providenciam.